Roberto
Francis Drummond (Ferros, 21 de dezembro de 1933 — Belo Horizonte, 21 de junho
de 2002) foi um jornalista, poeta e escritor mineiro. Participou da chamada
literatura pop, marcada pela ausência de cerimônias e pela proximidade com o
quotidiano.
Roberto
Drumond era colunista da Folha de São Paulo e escrevia às quartas feiras.
Revirando alguns livros antigos encontrei um recorte da Folha e compartilho uma
crônica datada de 28 de setembro de 1983, expressando o sentimento do escritor
sobre o cotidiano brasileiro daquela época! Essas crônicas não constam de
nenhum livro seu editado:
NO PAÍS
DE SÃO JOÃOZINHO TRINTA
"Senhoras
e Senhores: lamento ter que informar que, neste exato momento, uma moça
brasileira está morrendo.
Ei-la no
calçadão da avenida, a cabeça deitada na perna do pai, no meio de buzinas, do
vozerio dos camelôs e dos cambistas que anunciam a sorte grande.
_mas ela
é uma moça tão sem sorte, tem 18 anos, negros cabelos, pele morena e daqui a
pouco vai morrer.
Não, não
pensem que é uma moça que veio do nordeste, não. Ou que perdeu seus pertences
numa cheia do sul, não. O nordeste da moça é por aqui mesmo: é onde desabam as
tempestades, mas nunca chega a bonança.
Ao lado
da moça que vai morrer, vítima de uma misteriosa doença, um menino, aprendiz de
camelô e de trombadinha, tenta atrair a atenção dos que passam: diz que a moça
vai virar santa. Mas todos apressam o passo e, pela expressão que fazem, é como
se rezassem:
_São
Joãozinho Trinta, santo e pecador da alegria brasileira, uma festa, cheia de
plumas e paetês, nos dai hoje...
Ah, o São
Joãozinho Trinta faz o milagre, porque logo ali adiante, na loja de discos,
Pepeu Gomes canta em ritmo de festa, exala o seu lado feminino (que não fere o
masculino) e dá um salve à alegria.
Quanto a
mim, posto-me ao lado da moça e do seu pai, e fico ouvindo o diálogo dos dois.
Que é assim:
Moça que
está morrendo: _Pai,...
_O que é
minha filha?
_Estou
com vontade de comer geleia de maracujá, pai...
_Mas você
nunca comer geleia de maracujá minha filha...
_Mas eu
queria comer é geleia de maracujá, pai...
_Geleia
de maracujá nem existe, minha filha...
_Existe,
pai, escuta, pai...
_ O que
é, minha filha?
_ Estou
com vontade de dançar, pai...
_Mas você
nunca gostou de dançar, minha filha...
_`Por
isso mesmo, pai. Eu queria usar um vestido bonito. Um vestido que os homens iam
me olhar e achar que eu era uma flor azul e verde...
_Mas você
nunca foi uma flor, minha filha, por que agora você quer ser uma flor?
_Por isso
mesmo, pai, porque eu nunca fui uma flor. Mas os homens iam me olhar e iam
pensar numa flor...
_Você
nunca falou assim antes, minha filha...
_ É,
nunca falei. Eu queria dançar uma valsa, pai...
_Uma
valsa, minha filha?
_É,
pai...
_Mas você
nunca dançou uma valsa antes, minha filha,...
_Por isso
mesmo que eu queria dançar, pai...
_Está
bem, minha filha...
_Está
tocando uma valsa, pai...
_É, minha
filha,...
_Está
havendo uma festa, pai...
_Está
minha filha...
_Todo o
Brasil está na festa, pai?
_Está
minha filha...
_Que bom,
pai...
Senhoras
e Senhores: lamento muito ter que informar que, nesse exato momento, enquanto
Elba Ramalho canta na loja de discos e o Brasil parece feliz, uma moça
brasileira acaba de morrer, deitada na perna do pai, mas se sentindo uma flor,
uma rara flor do Brasil"
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