terça-feira, 11 de junho de 2024

Sentado no café de tantos encontros, Carlos escrevia mais uma carta ao seu amigo Pedro!!

 


Madrid, 7 de dezembro de 83

Pedrinho querido,

Estou nesse início de noite naquele mesmo café em Madrid, perto da Plaza Mayor, quando nos encontramos em 74. Estou bebendo um delicioso Rioja Tinto. Pois é, aqui estou sozinho, fazendo uma espécie de revisão espiritual. Acabo de chegar de Paris. Os editores me fizeram uma homenagem pelo lançamento em francês do meu último livro, “Outono do Descontentamento“. Sempre gostei dessa estação. Minha estação favorita. No outono as pessoas deviam se comportar como as folhas. Caindo e se renovando. No outono as almas trocam de posição. A renovação da vida acontece no outono. Do descontentamento nasce a rebeldia. Da rebeldia nascem as mudanças. A festa foi no último dia 29 de novembro. Sabe quem estava lá e conversamos muito? O Ives e a Simone. Também estava o Danny, le rouge, que ficou famoso em 68. O Fernando Gabeira contou de novo aquela estória de condutor de metrô em Estocolmo quando estava exilado, lembra? Quantas cartas já ti enviei. Foram tantas que nem sei ao certo. . Quando me sinto só lembro-me de ti, meu amigo. E a sua trilogia, está saindo do pensamento e entrando no papel? Em um dos nossos últimos encontros entramos nesse café e resolvemos pedir uma garrafa de vinho. O garçom abriu uma, mais uma, e mais uma. Tomamos umas tantas garrafas e fumamos não sei quantos cigarros. Quando os maços acabaram, o garçom trouxe Gitanes. Só tinha Gitanes naquela noite. Não conversamos em nenhum momento sequer. Você com seus pensamentos e eu com os meus. Lá pela quase madrugada, pagamos e cada um seguiu rumos diferentes logo na saída do café. Nem um simples até logo foi dito. Foi o encontro mais honesto que já tive! A sensação de utilidade em relação ao próprio país me parece diferente entre um europeu e um latino americano. Em um encontro que tive, anos atrás, com o Mário Vargas Llosa, ele comentou dessa mania que a Europa tem de achar que são nossos eternos protetores. Essa atitude impede nosso amadurecimento. Pedrinho, estamos em 83. Lá se foram quase vinte anos. Nossos guerrilheiros de outrora estão envelhecidos e engajados na luta pela própria sobrevivência. Sem compromisso com o passado de lutas e ideais, olhando-se nos espelhos de hotéis baratos e incomodando-se com o que veem. Quão românticos fomos. Estou assustado com o rumo das coisas. Até Shakespeare me assusta! Todos os livros que escrevi falam de lutas, ideias, vidas de outono. Meus personagens nada mais podem fazer. Boris, Karina, Pablo, Paco, Vicente, Ivan e tantos outros emudecem dentro das páginas. Grupos revolucionários viraram quadrilhas. Nessas horas lembro-me do Ettore Scala e seu filme “Nós que nos amávamos tanto“.  Somos a própria frase de um dos personagens, “nós pensávamos que mudaríamos o mundo, mas foi o mundo que nos mudou”.

Há, lembra-se de uma estória bem antiga, quando na segunda guerra eu era correspondente em Londres, que eu lhe contei. A do jornalista colombiano? Uns colegas jornalistas me contaram que o safado era mesmo espião! A senhora austríaca com quem falava sempre pelo rádio, era um dos principais assessores do Hitler. Imagina que um dia desses, li uma crônica do Roberto Drumond, em um jornal de São Paulo, que dizia mais ou menos assim em seu final, “Lamento muito ter que informar que neste exato momento, enquanto Elba Ramalho canta na loja de discos e o Brasil parece feliz, uma moça brasileira acaba de morrer, deitada na perna do pai, mas se sentindo uma flor, uma rara flor do Brasil". Ao mesmo tempo bonito e triste. Quando do meu silêncio solidificarei uma nuvem e de lá viverei minha eternidade, flutuando por esse vasto mundo à procura de novos personagens, novas revoluções, novos ideais. Estou acabando meu vinho e agora vou para o hotel ensaiar mais uma crônica. Escrevo crônicas políticas para um jornal de São Paulo.

 Um abraço afetuoso de seu sempre amigo Carlos

 

 

 

sábado, 19 de agosto de 2023

NO PAÍS DE SÃO JOÃOZINHO TRINTA!!

 


Roberto Francis Drummond (Ferros, 21 de dezembro de 1933 — Belo Horizonte, 21 de junho de 2002) foi um jornalista, poeta e escritor mineiro. Participou da chamada literatura pop, marcada pela ausência de cerimônias e pela proximidade com o quotidiano.

Roberto Drumond era colunista da Folha de São Paulo e escrevia às quartas feiras. Revirando alguns livros antigos encontrei um recorte da Folha e compartilho uma crônica datada de 28 de setembro de 1983, expressando o sentimento do escritor sobre o cotidiano brasileiro daquela época! Essas crônicas não constam de nenhum livro seu editado:

NO PAÍS DE SÃO JOÃOZINHO TRINTA

"Senhoras e Senhores: lamento ter que informar que, neste exato momento, uma moça brasileira está morrendo.

Ei-la no calçadão da avenida, a cabeça deitada na perna do pai, no meio de buzinas, do vozerio dos camelôs e dos cambistas que anunciam a sorte grande.

_mas ela é uma moça tão sem sorte, tem 18 anos, negros cabelos, pele morena e daqui a pouco vai morrer.

Não, não pensem que é uma moça que veio do nordeste, não. Ou que perdeu seus pertences numa cheia do sul, não. O nordeste da moça é por aqui mesmo: é onde desabam as tempestades, mas nunca chega a bonança.

Ao lado da moça que vai morrer, vítima de uma misteriosa doença, um menino, aprendiz de camelô e de trombadinha, tenta atrair a atenção dos que passam: diz que a moça vai virar santa. Mas todos apressam o passo e, pela expressão que fazem, é como se rezassem:

_São Joãozinho Trinta, santo e pecador da alegria brasileira, uma festa, cheia de plumas e paetês, nos dai hoje...

Ah, o São Joãozinho Trinta faz o milagre, porque logo ali adiante, na loja de discos, Pepeu Gomes canta em ritmo de festa, exala o seu lado feminino (que não fere o masculino) e dá um salve à alegria.

Quanto a mim, posto-me ao lado da moça e do seu pai, e fico ouvindo o diálogo dos dois. Que é assim:

Moça que está morrendo: _Pai,...

_O que é minha filha?

_Estou com vontade de comer geleia de maracujá, pai...

_Mas você nunca comer geleia de maracujá minha filha...

_Mas eu queria comer é geleia de maracujá, pai...

_Geleia de maracujá nem existe, minha filha...

_Existe, pai, escuta, pai...

_ O que é, minha filha?

_ Estou com vontade de dançar, pai...

_Mas você nunca gostou de dançar, minha filha...

_`Por isso mesmo, pai. Eu queria usar um vestido bonito. Um vestido que os homens iam me olhar e achar que eu era uma flor azul e verde...

_Mas você nunca foi uma flor, minha filha, por que agora você quer ser uma flor?

_Por isso mesmo, pai, porque eu nunca fui uma flor. Mas os homens iam me olhar e iam pensar numa flor...

_Você nunca falou assim antes, minha filha...

_ É, nunca falei. Eu queria dançar uma valsa, pai...

_Uma valsa, minha filha?

_É, pai...

_Mas você nunca dançou uma valsa antes, minha filha,...

_Por isso mesmo que eu queria dançar, pai...

_Está bem, minha filha...

_Está tocando uma valsa, pai...

_É, minha filha,...

_Está havendo uma festa, pai...

_Está minha filha...

_Todo o Brasil está na festa, pai?

_Está minha filha...

_Que bom, pai...

Senhoras e Senhores: lamento muito ter que informar que, nesse exato momento, enquanto Elba Ramalho canta na loja de discos e o Brasil parece feliz, uma moça brasileira acaba de morrer, deitada na perna do pai, mas se sentindo uma flor, uma rara flor do Brasil"

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quarta-feira, 8 de março de 2023

Neste dia, mulheres que eu admiro!

 



Em maio de 1993, aos 42 anos, uma Juíza carioca, Denise Frossard, condenou toda a cúpula do jogo do bicho. A juíza havia convocado os chefes do jogo para depoimento em audiência, porém quando todos apareceram com seguranças armados, condenou o ato de ousadia com a prisão dos bicheiros. Catorze homens acusados de mandar matar, sequestrar e corromper para manter seu domínio à pena máxima de seis anos. Eram donos do Carnaval carioca, como patronos e financiadores das maiores escolas de samba, revezando-se no comando da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa).

Em 2012, outra juíza, Ana Paula Vieira de Carvalho, determinou a prisão de dez pessoas. A maioria presos anteriormente. Dentre eles, Chefões de Escolas de Samba foram condenados a penas que, somadas, ultrapassam 144 anos de reclusão. Cada um recebeu uma pena de 48 anos, oito meses e 15 dias de prisão. A punição se estendeu ainda ao bolso: eles foram condenados a pagar, juntos, R$33 milhões em multas.

Moral da estória: Algum Juiz do sexo masculino teria essa coragem e ousadia?

 

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022


 

Do Bom e do Melhor!

Vasculhando arquivos de minhas gavetas virtuais encontrei este texto da Leila Ferreira, uma jornalista mineira. Devo ter guardado porque achei o texto bom para uma reflexão imediata ou futura...



Estamos obcecados com "o melhor". Não sei quando foi que começou essa mania, mas hoje só queremos saber do "melhor".

Tem que ser o melhor computador, o melhor carro, o melhor emprego, a melhor dieta, a melhor operadora de celular, o melhor tênis, o melhor vinho. Bom não basta. O ideal é ter o top de linha, aquele que deixa os outros pra trás e que nos distingue, nos faz sentir importantes, porque, afinal, estamos com "o melhor". Isso até que outro "melhor" apareça - e é uma questão de dias ou de horas até isso acontecer. Novas marcas surgem a todo instante. Novas possibilidades também. E o que era melhor, de repente, nos parece superado, modesto, aquém do que podemos ter.

O que acontece, quando só queremos o melhor, é que passamos a viver inquietos, numa espécie de insatisfação permanente, num eterno desassossego. Não desfrutamos do que temos ou conquistamos, porque estamos de olho no que falta conquistar ou ter. Cada comercial na TV nos convence de que merecemos ter mais do que temos. Cada artigo que lemos nos faz imaginar que os outros (ah, os outros...) estão vivendo melhor, comprando melhor, amando melhor, ganhando melhores salários. Aí a gente não relaxa, porque tem que correr atrás, de preferência com o melhor tênis.

Não que a gente deva se acomodar ou se contentar sempre com menos. Mas o menos, às vezes, é mais do que suficiente. Se não dirijo a 140, preciso realmente de um carro com tanta potência? Se gosto do que faço no meu trabalho, tenho que subir na empresa e assumir o cargo de chefia que vai me matar de estresse porque é o melhor cargo da empresa? E aquela TV de não sei quantas polegadas que acabou com o espaço do meu quarto? O restaurante onde sinto saudades da comida de casa e vou porque tem o "melhor chef"? Aquele xampu que usei durante anos tem que ser aposentado porque agora existe um melhor e dez vezes mais caro? O cabeleireiro do meu bairro tem mesmo que ser trocado pelo "melhor cabeleireiro"?

Tenho pensado no quanto essa busca permanente do melhor tem nos deixado ansiosos e nos impedido de desfrutar o "bom" que já temos. A casa que é pequena, mas nos acolhe. O emprego que não paga tão bem, mas nos enche de alegria. A TV que está velha, mas nunca deu defeito. O homem que tem defeitos (como nós), mas nos faz mais felizes do que os homens "perfeitos".


As férias que não vão ser na Europa, porque o dinheiro não deu, mas vai me dar a chance de estar perto de quem amo... O rosto que já não é jovem, mas carrega as marcas das histórias que me constituem. O corpo que já não é mais jovem, mas está vivo e sente 

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje?

 


Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. 

Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.” 

E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? 

Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos falsos que mistificam nossa percepção da situação em vez de permitir que pensemos nela.

Slavoj Žižek